A REVOLUÇÃO DAS PEDRAS
Manuel Calado, Arqueólogo
Há cerca de 8000 anos, grande parte das paisagens europeias, acabadas
de libertar dos mantos glaciares, estavam cobertas de florestas e matagais
densos.
Os grupos humanos que não tinham seguido para norte, com o recuo
dos gelos (e das manadas de renas) concentravam-se no litoral e, sobretudo,
na orla dos estuários dos grandes rios.
As regiões do interior, entre as quais se incluem os arredores
de Évora, eram territórios marginais, apenas frequentados
esporadicamente pelos últimos caçadores-recolectores. [
]
Os caçadores-recolectores mesolíticos parecem ter vivido
em sociedades pacíficas e solidárias, mantendo uma relação
de equilíbrio com o mundo natural [
]; o Homem não
necessitava de trabalhar e a Natureza fornecia-lhe em abundância
tudo aquilo de que necessitava para subsistir. Os recursos aquáticos
eram inesgotáveis e as margens dos estuários fartas de caça.
Em Portugal, os restos dessas sociedades foram descobertos sobretudo nos
limites superiores dos estuários do Tejo e do Sado, nas áreas
de Salvaterra de Magos e a montante de Alcácer do Sal. São
os chamados concheiros megalíticos. [
]
A Revolução Neolítica
As primeiras sociedades agrícolas surgiram [
] entre o Eufrates
e o Jordão, há mais de 11.000 anos; a pastorícia
apareceu, na mesma área, cerca de mil anos depois.
[
] No Próximo Oriente, onde foram geradas, as principais
novidades neolíticas surgiram no contexto de um processo lento,
gradual, fruto de crenças, experiências e decisões
que desembocaram nas primeiras sociedades agro-pastoris do mundo, com
um modo de vida sedentário, aldeão, em comunidades cuja
complexidade social foi crescendo em paralelo com o crescimento demográfico
dos povoados.
A agricultura e a pastorícia (juntamente com a pedra polida e a
cerâmica) chegaram ao nosso território como uma nova forma
de vida, exigindo, para poder ser adoptada pelos nossos mesolíticos,
uma profunda transformação nos hábitos e crenças
tradicionais [
].
Foram introduzidos novos hábitos alimentares: em primeiro lugar
o pão e o cordeiro, alimentos que vieram a ser sacralizados pela
tradição judaico-cristã; em segundo lugar, o leite
e derivados.
Estabeleceu-se também uma nova relação com as paisagens,
uma vez que na Europa de então, cultivar implicava a prévia
destruição da floresta; [
] uma decisão dramática,
o que, naturalmente explica a importância ritual do machado de pedra
polida em todas as sociedades neolíticas europeias.
O território do Tejo-Sado
Nos limites superiores dos estuários do Tejo e do Sado que entretanto
recuaram com a descida do nível do mar, foram descobertas notáveis
concentrações de povoados mesolíticos, mais ou menos
sedentários, sem qualquer paralelo à escala peninsular.
Essas comunidades de caçadores-recolectores complexos [
]
entraram, de algum modo, em contacto com o modo de vida neolítico
e, [
] por volta de 5500 a.C. alguns deles começaram a adoptá-lo.
Tudo indica que, dos concheiros do Tejo e Sado, vieram os primeiros pastores
e agricultores do Alentejo Central. Que foram, tal como na Bretanha, os
construtores dos primeiros monumentos megalíticos os menires.
Atendendo ao que se conhece em outra áreas europeias e a alguns
indícios arqueológicos recentes, é provável
que os homens dos concheiros do Tejo-Sado tenham frequentado, por razões
rituais e outras, as paisagens do Alentejo Central.
Instalados num universo aquático por excelência, perto da
foz do grande rio e onde não aflora qualquer rocha, é natural
que tenham sacralizado esse mundo liminar onde nascem os rios e se erguem
fantásticas formações graníticas, de cuja
responsabilidade na génese do fenómeno megalítico
se suspeita.
Os construtores de Menires
A construção de monumentos implicando a utilização
de mão-de-obra em escalas ainda hoje impressionantes foi uma invenção
do Neolítico europeu ocidental. Efectivamente, nada comparável
tinha sido levado a cabo no Próximo-Oriente.
Foi no Alentejo e na Bretanha, duas áreas com maiores concentrações
demográficas mesolíticas que, pela primeira vez, foram erguidos
grandes monumentos megalíticos, os menires. Pouco depois, e um
pouco por toda a Europa atlântica, começaram a proliferar
outros tipos de monumentos, esses já relacionados com o culto dos
antepassados, os dólmens.
As populações dos estuários nunca se neolitizaram:
uns terão permanecido fiéis às suas tradições
por mais uns séculos enquanto outros se instalaram no Alentejo
Central, área onde se detectou arqueologicamente uma forte presença
no Neolítico Antigo.
Os primeiros povoados alentejanos encostaram-se aos afloramentos
graníticos mais notáveis provavelmente por estes terem sido
antes lugares culturais e fazerem parte já de referências
geográficas mesolíticas; este seria, obviamente, um elemento
de continuidade.
No entanto, a atitude neolítica implicava uma ruptura com a tradição.
Havia que desbravar florestas e matagais; esta tarefa exigia um enorme
investimento colectivo num ambiente colectivo em que se enaltecia a capacidade
humana de, juntando esforços, dominar a natureza e alterar as paisagens.
Os menires parecem ser, entre outras coisas, uma exibição
dessa nova atitude e da opção assumida por quem os construiu.
São, por outro lado, uma forma de domesticar os próprios
santuários. Com efeito, os santuários mais antigos eram
sempre sítios naturais com características excepcionais,
como as grutas, as montanhas, os rios ou os rochedos. Pela primeira vez
a implantação dos lugares sagrados passou a ser uma decisão
humana, independente das características naturais da paisagem imediata.
Os construtores de menires alentejanos (e, neste aspecto como noutros,
apenas na Bretanha encontramos situações análogas)
gravaram sistematicamente em posições destacadas, na superfície
de alguns monólitos, um símbolo o báculo
claramente evocador da actividade pastoril com o qual queriam ser identificados.
Trata-se, pelo que parece, da afirmação de uma escolha fundamental
perante os grupos humanos que não tinham abandonado ainda o modo
de vida tradicional a caça e a recolecção.
[
] Abandonar as margens dos estuários e mudar-se de armas
e bagagens para os arredores de Évora foi, certamente, uma ruptura
profunda no quotidiano das populações do VI milénio
a.C. De um dia para o outro houve que adaptar-se a novos horizontes, novas
actividades, novos valores.
Os menires iniciaram, aliás, uma era de actividade febril de construção
de monumentos: durante mais de dois mil anos, novos monumentos
com destaque para as antas vieram [
] constituir a maior concentração
de monumentos megalíticos da Península Ibérica.
Por outro lado, a distribuição espacial dos primeiros monumentos
megalíticos não parece ter sido aleatória. Estudos
recentes sugerem relações astronómicas peculiares
entre os grandes monumentos, como os Almendres, e pontos destacados no
horizonte visível.
No caso referido, a serra d Ossa e, em particular, o cabeço
de Évoramonte, parecem assim ter pesado na decisão sobre
o local onde se implantou o monumento.
O cabeço de Monsaraz é outro caso em que, aparentemente,
alguns menires se implantaram em função de alinhamentos
astronómicos com miras naturais no horizonte.
Por outro lado, na estrutura interna dos recintos megalíticos alentejanos
é observável um alinhamento razoavelmente equinocial do
respectivo eixo maior, sempre em encostas expostas ao nascente.
Com o olhar de hoje
Visitar o Alentejo Central e desvendar-lhe os segredos ocultos por detrás
das pedras antigas é sentir os cenários dos conflitos e
negociações de que nasceram as primeiras sociedades camponesas
da fachada atlântica europeia. Na origem do mundo rural alentejano
encontramos um dos focos mais antigos da monumentalidade megalítica
mundial.
Entre a foz dos grandes rios e as respectivas nascentes viveu-se intensamente
essa transformação essencial que abriu caminho para as sociedades
urbanas e que, no fundo, se traduziu numa alteração irreversível
na forma como os homens definiram o seu lugar no mundo. Um mundo a dominar,
a alterar, a domesticar e civilizar. [
]